No dia em que entrei para a escola, a minha mãe levou-me pela mão. Acho que foi o aspecto mais relevante desse dia e o único que recordo. Não me lembro de ter chorado, batido com os pés, esperneado ou desatado a correr rua abaixo. Foi tudo muito natural. Como o respirar, o comer e o dormir. "Vamos para a escola", disse a minha mãe. E lá fui eu.
Gostei muito da minha classe. Todos gostavam de jogar à bola. E quando digo todos, no masculino, é mesmo para ser levado à letra, pois na minha turma não havia meninas. Cheguei mesmo a pensar que as meninas não deviam ir à escola. Já deviam nascer espertas e com tudo sabido. No entanto, toda esta visão de uma escola masculina depressa se desvaneceu quando tocou para o primeiro intervalo e comecei a ver marés de meninas, enxurradas de catraias, dilúvios de cachopas a saírem de outras salas. A única menina que saiu da minha sala foi a senhora professora, a Sra. D. Glória. Na altura, para mim, o facto de estar na única classe de rapazes da escola era-me perfeitamente indiferente. Até dava jeito. Havia mais gente para jogar à bola e orgulhávamo-nos de ser a única turma da escola que podia fazer um campeonato intra-turma.
Qualquer coisa servia para jogar. Um pacote de leite, uma lata de salsichas, uma bola feita de papéis e fita-cola. O importante era correr, fintar e marcar golos. Outra coisa importante para os meus colegas era pertencer à minha equipa. É que eu tinha jeito para a coisa. A minha mãe é que não achava grande piada quando me via chegar a casa completamente encharcado em suor, ofegante e com as faces rubras do calor do jogo que se prolongava muito para além do fim das aulas. Da euforia dos golos à dor dos açoites ia pois uma curtíssima distância.
Eu acho que a D. Glória gostava de mim. Apesar de não ser o melhor da turma, obtinha bons resultados em todas as matérias. Em geral era bem comportado e usava uns óculos de hastes pretas e grossas (nos dias de calor não davam jeito nenhum para se jogar futebol, mais tarde deduzi que as meninas também não lhes deviam achar grande piada). Foram estes óculos os responsáveis pela primeira de algumas alcunhas que acompanharam a minha infância: o cientista. E eu até que gostava. É claro que as minhas únicas experiências como tal se limitavam a tentar fazer de todo e qualquer monte de papéis uma bola de futebol. Mas, quanto a futebol, já estamos conversados. Como eu dizia, eu acho que a Sra. Professora gostava de mim. E como prova irrefutável do que afirmo está o facto de ser sempre eu o escolhido, dia sim, dia não (quando não era todos os dias), para ir à confeitaria, por volta das 4 da tarde, comprar uma delícia para a Sra. Professora. Tal empresa não era para todos! Não existe na minha memória acção em cujo desempenho eu não tenha depositado tanto cuidado e perícia como nesta de transportar o pastel preferido da D. Glória. E nunca tropecei, nunca o deixei cair da mão, o que ainda hoje me enche de orgulho.
Quando nos portávamos mal, a D. Glória batia-nos. A mão era o recurso mais utilizado, mas aquele que nós mais temíamos era a régua. Bastava pronunciar os meus dois apelidos num registo sonoro mais elevado do que o habitual para eu perceber que aí vinha reguada (as estaladas chegavam sem aviso). Dez, vinte ou trinta reguadas, conforme o delito, provocavam, para além da humilhação pública, uma dor arrepiante que eu nunca soube muito bem explicar. Ia dos pés à cabeça e voltava a descer como se se quisesse assegurar que ficava bem distribuída por todo o corpo. Era horrível. Ainda por cima, no meu caso, as lágrimas encharcavam as lentes dos óculos, o que me deixava completamente desorientado. O Mário, esse nunca apanhou da professora. O Mário era o melhor aluno da turma. O Mário também fazia asneiras. O Mário tinha um pai que ia para as reuniões fazer muito barulho, diziam-me os meus pais. Em quatro anos de escola foi o único a quem nunca vimos a D. Glória pôr a mão ou zurzir com a régua. Devo ter aprendido aqui a noção de injustiça.
Estas recordações surgem-me como quadros algo independentes uns dos outros, por vezes com um fio condutor, mas na sua maioria são episódios e imagens soltas que nunca me saíram da cabeça. Uma dessas imagens é a do filho da minha professora a entrar na nossa sala todo esbaforido e a dizer em alta voz "Acabei, mãe!!!". Não me lembro do que pensei na altura, mas devo ter achado que ele tinha acabado de comer a sopa ou de fazer os T.P.C. Não era preciso aquele entusiasmo todo! Mais tarde a professora explicou-nos que ele já sabia tudo o que escola lhe tinha ensinado e por isso não precisava de lá voltar. Achei que um dia também ia gostar que me acontecesse o mesmo, ainda que a hipótese de deixar de jogar à bola com os meus amigos tornasse essa perspectiva menos apetecível.
Na quarta classe entrou uma menina para a nossa turma. Chamava-se Luísa e era muito bonita. Na altura foi o acontecimento do ano, hoje penso no que terá passado pela cabeça do Sr. Director para a colocar na única turma de rapazolas, alguns já "com a escola toda"... Não há muito para dizer sobre a menina a não ser o facto de nunca lhe termos ouvido a voz no pouco tempo que lá esteve. Passado algum tempo, creio que dois ou três meses, mudou de escola. Má contratação.
Por falar em meninas, a minha primeira paixão chamava-se Eva. Pouco importa para o caso que ela nem sequer tenha tropeçado em mim uma só vez durante os quatro anos da primária, quanto mais reparar no miúdo de óculos grossos e repinha à John Lennon que jogava bem futebol. Para mim era a Eva e só isso bastava. Tal como a primeira mulher a inaugurar o sexo feminino à face da terra, Eva foi a primeira a inaugurar o meu coração. E deve ter sido a primeira a ter uma turma inteira de jogadores da bola apaixonados. Até nisso éramos uma turma unida.